segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Voou nas asas do cuco para fora do tempo

Há cerca de quatro ou cinco anos, estive no fim-de-semana da Páscoa na minha cada vez mais saudosa aldeia, o que não acontecia talvez há uns vinte anos. Sugado que fui pela vida urbana das grandes cidades como Lisboa, a minha terra, não contando com as saudades, pouco mais passou a representar do que uns escassos dias lá passados em cada ano.

Mesmo absorvidos pela azáfama característica da vida moderna nos grandes meios urbanos, os meus filhos, sempre ávidos das histórias que fizeram parte da minha infância e juventude, lá foram obtendo do pai o contar dessas histórias, despertando em mim tantas vezes aquela nostalgia que sempre se apodera de quem deixou para trás lugares, coisas, pessoas e mesmo animais que recorda com grande saudade.

Submergindo nesse oceano de saudosas recordações, acabo por sentir quão grande foi a minha sorte em ter nascido e crescido na aldeia. Belas e saudosas são as recordações da primavera, que rompia jubilosa em louvor ao Criador. Era o tempo em que eu via muitas das árvores de fruto prepararem-se para o banquete que chegava pelo verão, ao se vestirem de noivas, cada espécie engalanando-se mais do que a outra. Aos campos e outeiros, a Primavera trazia cores exuberantes, variadíssimos perfumes e alegres sonoridades, fossem elas da fauna natural ou do balir do cordeirinho de um rebanho que andase por perto. Numa verdadeira profusão de vida, ela vinha favorecer o homem e todos os demais seres vivos. Era a festa da natureza, que contagiava toda a criação.

Para a abertura oficial desta festa, todos os anos chegavam cantores de longínquas paragens. Tão grande era o acontecimento, que, com o Cuco e a Bubela como solistas, havia festa todos os dias. Os primeiros concertos destas duas aves, eram sempre saudados com grande alegria. Só as andorinhas podiam com elas rivalizar, com seus mais elaborados espectáculos que iam da dança em seus velozes e acrobáticos voos, ao grande coral com seu melódico e alegre chilrear.

Por vezes, o dever do bem cumprir com aquilo que me tinha sido determinado ficava por momentos esquecido, quando o Cuco ou a Bubela montavam o seu palco próximo, ficando eu atento ao seu canto, pelo qual tentavam contar-me as aventuras vividas por longínquas paragens de onde chegavam, mas não vivi na aldeia o tempo suficiente para com eles mais aprender...

Crescendo ao ritmo do pulsar da natureza e perscrutando a harmonia nela existente, mais fácil se tornou para mim assimilar os ensinamentos que dela retirava, ao mesmo tempo que era conduzido pelo sempre atento e afável saber de meus pais. A educação que meus irmãos e eu deles recebemos, foi positivamente severa no tocante à forma como deveríamos respeitar os demais. Dessa educação resultaria em nós uma especial atenção no trato que deveríamos ter com aqueles que por alguma razão pudessem ser desfavorecidos, fosse a nível cognitivo, mental, ou mesmo físico, e como aprendizes da vida em sociedade, até da natureza pudemos retirar o ensinamento das diferenças existentes numa mesma espécie. E se em toda a criação o homem é a obra-prima, para quem, como eu, sempre se sentiu enamorado pela diversidade que compõe toda a beleza da Criação, muito maior é o dever de compreensão e respeito para com todos os seres humanos que possam ser diferentes.

Se o contacto com as pessoas da terra era escasso pelas curtas visitas que fazia em cada ano, a partir do momento que passei a fazer as deslocações em transporte próprio, ficou muitíssimo mais reduzido esse contacto, o que levaria a recordar-me desta ou daquela pessoa apenas quando em conversa o seu nome era referido e, por sua vez, outras ficariam bem mais distantes no espaço da recordação. Assim aconteceu que, na visita que refiro ao início, cheguei mesmo a admitir que depois de tantos anos sem os ver nem neles se falar, algum dos irmãos por quem perguntei já tivesse falecido. Espantou-me a resposta que obtive. O “Tonho” e o Zé, que havia vários anos que tinham deixado a aldeia para irem para uma casa de repouso para os lados de Vila Real, estavam então na Casa de Santa Marta, em Chaves.

Estes dois irmãos eram um pouco desfavorecidos pela natureza, facto que lhes acarretou uma carga ainda bem maior, que era a zombaria de que muitas vezes eram alvo, principalmente por parte da garotada, mas também por outros de maior idade. Quão triste eu ficava muitas vezes, ao ver o Zé exasperado pelas diabruras que lhe faziam, em atitudes que para mim sempre estiveram mais próximas da crueldade do que da má educação. Para além de terem sido meus vizinhos, terão sido também estes factores que me levariam a sentir-me fortemente impelido a visitá-los, visita que fizemos os cinco, contando com a minha sogra que nos acompanhou.

O “Tonho”, disfrutava da belíssima tarde soalheira no jardim, antes de um outro senhor a quem por eles perguntámos o ir chamar. Com uma memória aparentemente bem melhor do que a minha, recebeu-me como se apenas alguns meses tivessem passado desde que nos encontrámos pela última vez. Aquele estado emocional a que pode chegar-se quando se encontram a alegre expectativa, o bem-querer e outros bons sentimentos, apoderou-se de mim e, sendo mais forte do que eu, fez-me ceder à emoção. Enquanto éramos conduzidos até à sala de um andar superior onde se encontrava o Zé, viu-se a amável Irmã que nos acompanhava na necessidade de me dizer que o visitado não devia ver-me assim, e eu, tentei explicar-lhe o que nem sempre é explicável…

Esforçando-me por me recompor, a boa Irmã, da Congregação das Irmãzinhas dos Anciãos Desamparados, lá nos apresentou, não tendo o visitado necessidade de se esforçar para saber de quem se tratava. Com que devoção eu estive aqueles momentos junto do Zé, falando-lhe mais com a alma do que de outra forma. Ele estava tão lindo!... Os seus lindos olhos azuis, pareceram-me muito mais bonitos naquele momento, não sei se pela forma como eu os via, se por tudo o que eles diziam da própria pessoa e daquelas que tão carinhosamente dela cuidavam. Quando chegámos, encontrámo-lo um pouco agitado e, quiçá pela visita, as suas tremuras começaram a aumentar. Breves minutos depois, até a gentil freira se mostrou admirada por tão súbita serenidade que o invadiu, e passou a estar como se nada tivesse.

No final, mais do que pelo simples gosto de visitar a belíssima capela da casa, lá tive de me recolher uns momentos em agradecimento a Deus pelo bem-estar daqueles irmãos e pela paz tão merecida de que agora gozavam em sua velhice.

Passaram exactamente três anos* desde que Deus libertou o Zé das muitas dificuldades que viveu nesta vida e das suas limitações terrenas. Possa ele agora ser benigno para quantos com ele privaram, depois de durante tantos anos a palavra “benigno” lhe ser associada ao nome como se de apelido se tratasse.

Quem sabe se um dia numa Primavera, lá para os Salgueirinhos, Lama-susana, Carvalhas ou “Abelãeras”, por onde o Zé há muitos anos andou com seus bois, algum gaio, cuco ou milhafre, não virão falar-me dele… Até lá, em terra lavrada por onde passe, pegadas de lobo poderei encontrar, levando-me em pensamento para tão saudosos tempos… Estarei atento ao canto do mocho ao anoitecer, que em seus lamentos parece continuar à procura, chamando, chamando, por algum dos bois que fugia ao Zé…

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* Tinha acabado o texto, e nele dizia (no penúltimo parágrafo) que, havia cerca de dois anos desde a sua partida, mas, umas duas horas depois, consegui saber que a partida se fez no dia 20-10-2005. Será concidência? Hoje, é precisamente dia 20 de Outubro...