segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Concertos de música sacra nas igrejas

 Coisa insólita na ordem da criação,
é a loucura do homem que ousa dar ordem de despejo a Deus.

 Um coro de música sacra, a actuar num auditório ou noutro espaço capaz, obtém do público a mesma reacção de júbilo, se for um bom repertório e elevada a qualidade de execução.

O que vem acontecendo, cada vez mais, por todo o lado, é bem revelador de que o antropocentrismo nuns casos, e a ingenuidade noutros, ocuparam o lugar do sagrado. E para que seja devolvido a Deus o que é de Deus, importa que vejamos:  

1- Os concertos de música sacra em igrejas, são um mal difícil de entender como tal, astutamente aproveitados pelo Inimigo para que nelas se perca o sentido do sagrado ‒ e quem ainda não viu isto, é porque a cegueira é grande. Pese embora sua beleza, são eventos culturais que não alcançam outro bem senão o gozo do público e satisfação de quem lhe proporciona um momento cultural diferente, tudo se resumindo a isso mesmo: o gozo do público, e o coro, seu centro, ficando o templo reduzido a mera sala de espectáculo.

Os efeitos, para os que só nestas circunstâncias entram numa igreja, não vão além de um agradável momento cultural. Em suma, assim é, tanto para ateus e para os que deixaram a prática religiosa, como para os católicos que apreciam a mesma coisa.

2- Já uma cerimónia litúrgica, onde defendo que se deve enquadrar a participação de um bom coro de música sacra, tem como fim a glória de Deus, o diálogo de nossas almas com Ele pelo louvor à Sua divina majestade, pela petição e súplica em favor das nossas necessidades, da Igreja e do mundo. E o resultado, para cuja conclusão não é preciso ser teólogo nem entendido noutras ciências, será o das almas se sentirem envolvidas pela graça que nelas manifesta seus divinos apelos.

Nestes moldes, em que já não podemos falar de concertos, mas, por exemplo, de vigílias em que tudo está voltado para Deus, o que resultará na maioria é o de saírem com a sensação de terem saboreado o divino. Isto para uns, enquanto, que, para outros, tanto para os que andam mais desgastados e abatidos, como para os que andam afastados, será como uma terapia da alma, ficando em todos favorecido o acolhimento da graça que neles apela à prática dos sacramentos.

Se o fim da edificação de uma igreja é o de ser templo e morada de Deus, onde Cristo, Criador, se entrega ao Pai em sacrifício pela criatura, não ouse o homem fazer dela seu espaço de recreio.

Nas igrejas onde deixe de se praticar estritamente o culto a Deus, o Espírito Santo, que não se impõe, mesmo sendo o dono e Senhor do templo, retira-Se, aceitando a loucura do homem, que Lhe dá “ordem de despejo”…

Aceda a este link e veja onde o Inimigo chegou, depois de conseguir que nas igrejas se perdesse o sentido do sagrado ‒ não se deixe enganar.

https://drive.google.com/file/d/1xr20Ou5KQZmUHhIqZW-GUnHAxLDMTorC/view?usp=share_link

 Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!  

 José Augusto Santos

domingo, 20 de fevereiro de 2022

O Indigente e o Altruista


Num fim de tarde, na Baixa, em Lisboa, ao passar junto de uma paragem de autocarro, o Francisco reparou que de entre as várias pessoas que nela se encontravam, havia uma que claramente se notava não se tratar de um pretenso passageiro: ocultando-se no recanto interior da paragem, procurava evitar que em seu rosto se vissem os sinais de sua tristeza. Chorava.

Depois de se inteirar das razões que o levavam a estar assim, o Francisco acedeu em comprar-lhe um maço de lenços para o ajudar a não ter que suportar todo o dia apenas com uma sandes.

Quando o infeliz viu que tinha diante de si alguém que a ele se dirigira, que o ouvia e que até deu pelos lenços o que daria para comprar muitos maços, num momento em que não estava a suportar o ser ignorado ou repelido por toda a gente, como se estivesse sozinho sem que ninguém o visse, benzeu-se. Mas num gesto tão verdadeiro, que impressionou o Francisco.

Depois de um curto diálogo dirigiram-se a uma pastelaria ou snack-bar, uma vez que, por humildade, o pobre não aceitou tomar uma melhor refeição num restaurante para a qual fora convidado.

A escolha parece não ter sido a mais acertada para o Armando (assim se chama o pobre rapaz), pois, pelo traje e se calhar pela cor, levou a que um solícito empregado lhe demonstrasse claramente que, alguém assim, não era digno de uma casa cujos empregados vestem elegantes fardas.

Ainda o Armando não se tinha recomposto da humilhação, quando um segundo empregado se lhe dirige no mesmo sentido, acabando – à semelhança do primeiro – por pedir imensas desculpas ao Francisco.

Serviu o incidente para mais uma vez o pobre demonstrar o quão madrasta para ele é a vida, justificando a razão pela qual até já tinha tentado acabar com ela. De facto, sem qualquer tipo de amparo, sem uma mão caridosa, é natural que ocorram tais tentações a quem, como ele, tinha vindo de Angola com a mãe aos dois ou três anos, e aos nove se vê, por morte da mãe, sozinho no mundo, tendo a rua como morada, os caixotes do lixo como mesa, o frio da noite como agasalho e o passeio num recanto de um prédio como cama.

Se a tudo isto sobrevivia há nove ou dez anos, estava a ser-lhe bem mais difícil sobreviver à indiferença e frieza das pessoas, o que o remetia para o recanto mais angustiante da solidão humana.

Duas apresentáveis senhoras que também ao balcão se encontravam, não disfarçavam sua admiração pelo altruísmo do Francisco, enquanto o viam animar o Armando, ajudando-o a interpretar sinais de esperança.

Assegurando-se de que ficaria bem alimentado, depois de ter pago a despesa, o Francisco despediu-se, estendendo-lhe a mão direita, enquanto que com a esquerda lhe tocava o rosto e com o olhar procurava tocar-lhe a alma. E apressou-se a sair antes que os seus olhos lhe denunciassem a grande inundação que no seu interior se anunciava no rio da emoção, onde corriam misturadas as águas da caridade, do amor e da compaixão.

Poucas dezenas de metros percorridos, com as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto, entendendo que não tinha referido um aspecto que ajudaria o Armando a discernir os sinais de esperança, recompondo-se, voltou para trás e disse-lhe que reparasse como valia a pena não desistir, porque se um dia a polícia o importunava, não o deixando pernoitar em determinados lugares, outro dia, outro polícia, que era ele, ouvia-o, dando-lhe a atenção que dizia não ter, tratando-o com a maior dignidade.

Depois disto, a admiração inicial das já referidas senhoras ficou bem mais evidente em seus rostos, quiçá por não esperarem que um polícia também faça destes “serviços”. Por fim, enquanto o Armando acabava de comer, o compassivo polícia deu-lhe mais dinheiro, para que ao menos aquela noite não a passasse na rua. E como que impelido por uma voz interior, disse-lhe que iria aparecer alguém que o iria ajudar, e saiu.

Se é verdade que não são todos os polícias, todos os dias, a fazerem destes “serviços”, também é verdade que todos ganharíamos se olhássemos para a polícia com outros olhos. E porque intervenções destas não têm a visibilidade que é dada às que são de lamentar, é de inteira justiça que relate aqui este “caso de polícia”.

 Fonte:

SANTOS, José Augusto, O Indigente e o Altruísta, Notícias de Chaves, n.º 2460 (27-02-1998), p.11

 

terça-feira, 3 de agosto de 2021

HISTÓRIAS DE VILELA SECA - 2

 2- O acto de solidariedade que o levou à prisão

Naquele tempo, aí por volta de 1935, 1936, havia em Vilela muitas juntas de bois, e as que não jungiam havia que ir com elas para o pasto, que poderia ser nos lameiros ou nos baldios, ou mesmo nos outeiros. Nesse trabalho de pastorícia procuravam os pais empenhar os filhos que já fossem capazes de dar conta do recado, que normalmente acontecia por volta da adolescência.

Não raro, os animais e seus pastores se encontravam com os das aldeias vizinhas. E como se sabe, rapazes à solta, sem estarem sob o olhar vigilante dos pais, tende a dar mau resultado. Num desses encontros, em resposta a alguma provocação, os de Vilela e os de Vilarelho pegaram-se. Quiçá porque algum dos de Vilarelho tenha ficado mais queixoso, a sede de vingança levou a que alguns adultos se associassem à causa, e o ajuste de contas teve dia marcado.

Sabendo-se porém em Vilela que esse ajuste de contas ia muito além de uma simples escaramuça entre rapazes, que tomara sérias proporções, tanto pelo número dos contendores como pelos meios a usar ‒ que não se limitavam aos cajados ‒, elevando por isso a gravidade da contenda, o amansador da mula, ouvindo dizer que os de Vilarelho até de pistola vinham, quis defender os de Vilela, e, fosse para servir como meio dissuasor, ou como fim último a usar em caso de necessidade de autodefesa, levou a espingarda ˗ ao que se diz, a da tropa.

No Campo Redondo, segundo o que pude apurar, o penedo que estará na propriedade que era do tio Zé Luís “Morim”, ou ao lado desta, coisa que já não recordo apesar de por lá muitas vezes eu ter andado com a minha Rola, serviu de trincheira ao portador da espingarda. E porque os de Vilarelho vinham de facto com vontade de fazer sangue, terão feito disparos. Em resposta, do lado de Vilela houve também um disparo, esse certeiro, que fez tombar o mais afoito de Vilarelho. Vendo tombar o primeiro, aqueles a quem fervia o “sangue na guelra” gelaram diante da realidade que não esperavam ver do seu lado, e logo debandaram sem conseguirem seus intentos. Do que deles poderia resultar, não sabemos; o que ficou como dado certo, foi uma morte a lamentar.

E assim, de um momento para o outro, um jovem passa de herói a vilão, neste caso, a assassino. Por esse crime respondeu em tribunal colectivo, que é, como sabemos, composto por três juízes. A vítima trabalhava como sapateiro e era filho de um Cabo da Guarda Fiscal, de Outeiro Seco, a prestar serviço no posto de Vilarelho.

O autor do crime teve como testemunha abonatória o filho do Juiz e Deputado da Assembleia da República, Dr. Moura, em casa de quem praticamente crescera. Sem antecedentes criminais que pudessem pesar contra ele, foi o Zé Maria condenado a três anos de prisão efectiva, e ainda a uma indemnização, pena que cumpriu em parte, a do tempo de cadeia, mas não a da indemnização, por não ter como a pagar, nem bens que pudessem ser alienados.

Com o epíteto de “guicho”, que possivelmente já lhe adviria da infância, viria a ficar conhecido por tantos que, como eu, o conheceram ainda muitos anos.

 José Augusto Santos

HISTÓRIAS DE VILELA SECA - 1

 1-      O Soldado que deu “instrução” a um Sargento

Possuidor de uma personalidade que há tantas gerações é aquela que melhor caracteriza o Transmontano, que é, além de outras virtudes, a do sentido de justiça ‒ ainda que muitas vezes os actos dela decorrentes não encontrem cobertura no quadro jurídico, o soldado Martins cumpria o serviço militar em Chaves, quando, por razões que só esse outro lado do ser transmontano podem explicar, “teve” que “acertar o passo” a um Sargento. E a prova de que as lombeiradas sofridas pelo Sargento resultaram de um seu acto sujeito a sanção disciplinar, encontrou-se na transferência de unidade a que foi sujeito, ao ser transferido para o Porto. Já o Soldado, por muita razão que tivesse, teria que ser punido, pelo insólito de ser um Soldado a “dar instrução” a um Sargento J, pelo que lhe coube a ele a pena disciplinar da transferência para Bragança. Das penas aplicadas a ambos podemos depreender tratar-se de pena leve para o Sargento, na medida em que havia o transporte de comboio a unir Chaves e Porto, enquanto que para o nosso Soldado fora quase um desterro, por não haver qualquer meio de transporte que unisse Chaves e Bragança.

Lá, chegou, como seria de esperar, acompanhado de um “rótulo” que uns terão lido de uma forma e outros de forma diferente, que é como dizer: para uns, quiçá muito poucos, visto como valente, enquanto que para outros suscitava receio, ao entenderem que o “mimo” que dera ao Sargento aconteceu por que era mau.

Naquele tempo, os “todo-terreno” de que dispunha o Exército para o transporte de carga, eram mulas. Um dia, na parada o Comandante diz que dá um mês de licença ao soldado que conseguir amansar uma determinada mula. Na falta de voluntários, o Chaves, como lá passou a ser designado o nosso Soldado Martins, aceitou o desafio, mas sob a condição de poder tirar as botas, cobertas que seriam por polainas, que por sua vez se seguravam à perna por fivelas, formando um conjunto já por si desconfortável, que lhe dificultaria a necessária agilidade de movimentos. E apesar do invulgar pedido, o Comandante, dada a natureza do exercício, permitiu que assim fosse.

Com toda a parada desimpedida para o espectáculo que admitiam ser muito breve e em dois actos: o primeiro, de breves segundos em cima da mula, e o segundo a verem-no malhar no chão, descalço, o nosso intrépido soldado salta para cima da mula. Esta, que se estava nas tintas para a disciplina militar e para as ordens do Comandante, luta com todas as forças e usa de todas as manhas para se libertar do animal humano que ousara pôr-se em cima dela. Mas esse animal humano, o soldado que logo terá começado a deixar todos de boca aberta por ter aguentado os primeiros segundos sem cair, talvez por ter passado, certamente, por idênticas experiências com os animais que em sua casa terá amansado, não se aguentou apenas os primeiros segundos, mas durante todo o tempo que a mula se debateu com pinotes, rodopios e voltas e mais voltas parada fora, até que, exausta, pára, e acaba por se deitar, momento em que o herói do dia diz: «tragam cá a albarda», para dar por concluída a primeira e mais importante sessão do trabalho de amansar um animal.

Não menos admirado do que qualquer outro dos presentes, o Comandante louva a destreza e capacidade do Soldado Martins, ao dizer que fez ver aos mil soldados do Regimento.

E como as coisas difíceis eram para ele dificuldades a vencer, terá sido para o gozo desse mês de licença com que fora premiado, que o corajoso Martins veio a casa, usando como meio de transporte o único de que dispunha, certamente as botas da tropa. Sim, a pé, desde Bragança…

 José Augusto Santos

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

TUDO SE PASSA NUM PISCAR DE OLHOS

Muitos, usando da liberdade que o Criador a todos concedeu e jamais deixou de respeitar, não crêem nisto, mas o ser humano, desde a sua concepção, momento em que a alma criada por Deus a ele se une, é concebido para sempre, não apenas para o tempo em que neste mundo vive materialmente.

Então, se o tempo que vivemos neste mundo é apenas um piscar de olhos comparado com aquele para o qual todos fomos destinados, um breve caminho a percorrer até chegarmos à margem do grande mar profundo que todos atravessamos, é de interesse vital que façamos tal caminho exercitando-nos para a grande travessia.

Toda a humanidade, e cada um de nós, caminha sem mapa ou qualquer outro meio que lhe permita saber se ainda se encontra longe ou muito perto da margem do grande mar. É como estar numa ilha de densas florestas em que tanto dá caminhar num ou noutro sentido, pois todos vamos dar ao mar, esse mar misterioso porque ainda desconhecido para nós.

Aquele que nos lançou nesta aventura, deu-nos inteligência para interpretarmos todos os sinais que haveriam de nos servir de orientação para chegarmos a um ponto muito específico da ilha, um ponto que, embora de difícil acesso, é o único onde uma barca espera os que se deixaram orientar e não pouparam esforços para lá chegarem, para os levar para a civilização onde serão verdadeiramente e para sempre felizes.

Assim aconteceu durante um tempo, até que, vendo que a maioria se inclinava para outros sinais criados pelo inimigo com o propósito de nos conduzir por caminhos diversos que só levam a um medonho abismo, o Criador enviou um mensageiro, o Seu Próprio Filho, que nos trouxe cartas, mapas, bússolas, e até o conhecimento das estrelas para quando nos perdêssemos na noite. Mas não se ficou por aí. Comunicou o seu conhecimento e o seu poder a alguns que chamou para o efeito, dizendo-lhes que levassem a todos os restantes, sem esquecer aqueles que sempre seguiram outros trilhos e os que já se tinham desviado do caminho seguro, o conhecimento e o poder que lhes fora transmitido.

Acontece que alguns de entre os que foram chamados para serem guias, têm dado mau exemplo. Aproveitando os privilégios da própria condição de guias, são vistos nos mesmos caminhos onde se encontram os prazeres prometidos a quem seguir os sinais colocados pelo inimigo. E uma vez infiéis ao compromisso assumido de permanecerem firmes em seu posto e vigilantes para discernirem o mal que também a eles e em primeiro lugar procura seduzir, levam a maioria dos caminhantes a descrerem no caminho onde eles têm seus postos de vigia, o único pelo qual se pode chegar ao ponto onde a barca espera todo o que foi perseverante.

Se a culpa deles é imensa, a estultice dos que vão por outros caminhos ainda é maior ao se justificarem com a infidelidade dos guias. O caminho seguro já foi, ao longo dos tempos, percorrido por muitos e muitos caminhantes como nós, que nos deixaram em seus “diários” relatos impressionantes, onde os sensatos e inteligentes podem ver que afinal as primeiras dificuldades que levam muitos a desistirem é o contratestemunho de muitos que se deixaram corromper. E os que perseveraram apesar de todas as dificuldades, assim como outros que ainda estão como nós a percorrer o caminho, mas esse mesmo caminho certo, mostram-nos toda a nossa fraqueza, a qual nos leva a julgarmo-nos fortes ao criticarmos os maus exemplos, e justos por não sermos como eles. Mas também nos mostram o quão contaminados fomos por um mal que nos impede de vermos sem dificuldade as verdades eternas. E esse mal, que ataca em primeiro lugar a forma como vemos as coisas, espalha-se por outras áreas, visando essencialmente a responsável pelas emoções e sentimentos, daí que, quem dele padece, passa não só a não ver com clareza as cores do bem e do mal, mas ainda é levado a sentir repulsa, quando não é mesmo ódio, pelo grupo que fora constituído guia para todos nós, como se o mau exemplo de muitos deles retirasse as propriedades nutricionais ao alimento que pelo caminho nos vão dispensando. Desengane-se, pois, de uma vez: sem esse substancial e energético alimento, dado unicamente nos pontos preparados para o efeito, todos vamos ficando fracos ao ponto de aceitarmos mudar para outro caminho menos exigente.

Que ninguém pense que é dono e senhor de si mesmo. Quem assim pensa não se dá conta que, mais um ou dois passos, está mesmo à beira do abismo, no qual se precipitará se insistir em não dar ouvidos a quem do outro lado lhe grita para que volte para trás.

Agora para si que se deixou levar pelos que lhe falaram nos prazeres dos outros caminhos, pare, e procure por si mesmo quais os sinais que indicam o caminho certo. E porque ninguém lhe pode tirar tal liberdade, decida-se: ou por um dos muitos caminhos já percorridos, sabendo agora que todos vão dar ao abismo, ou pelo mais estreito mas seguro, o único que o conduz ao ponto onde se encontra a barca que o levará para mais além desta ilha onde ainda nos encontramos e para lá da qual quiçá pense nada mais existir, para onde a completa e verdadeira felicidade se vive para sempre.

Como não sabe qual a distância do percurso que lhe foi dado, e por isso desconhecer se é ainda hoje ou amanhã que chega ao fim, mude hoje mesmo, e corra até um dos postos dos guias para que lhe passe o salvo-conduto para entrar na barca. Vá, levante-se e corra!  

 

 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O que uns escondem e outros ignoram sobre as chamadas energias verdes

Descoberta uma nova galinha dos ovos de ouro, os industriais apresentam-na como a solução para os problemas ambientais, e os governos não só vão atrás como ainda se tornam aliados nessa propaganda.

Desenganemo-nos quanto ao que nos querem fazer crer nesta matéria, quando nos levam a aderir à ideia de que muito podemos contribuir para melhorar o ambiente ao adquirirmos automóveis eléctricos. Quem os adquire saberá dizer que o símbolo Z.E. identifica aquele veículo como não poluidor em CO2, um veículo de Emissões Zero. O que dificilmente saberá é que outros custos ambientais estão por trás, por que, para que esta nova galinha dos ovos de ouro possa dar cada vez mais ovos e nisso não vejamos problema algum, é-nos ocultada a forma como ela é alimentada.

Falando só na indústria automóvel, nem os donos da galinha, nem os seus caixeiros-viajantes, os governos, nos falam dos vários metais raros que são necessários para que um veículo eléctrico se possa mover, nem muito menos dos seus custos ambientais, que vão da extracção, ao que fazer-lhes sem prejuízos para o ambiente quando deixarem de ter utilidade.

Num interessantíssimo filme da RTP Play, que nos fala de “O lado negro das energias verdes”, é dito que, só em cobre, sem falar nos outros metais raros, um carro eléctrico pode conter até 80 Kg. E para a extracção e refinação do cobre, a mina de Chuquicamata, no Chile, fere de morte aquela que é umas das regiões mais desérticas do mundo, ao gastar, arrepiem-se os de recta consciência ecológica, cerca de dois mil litros de água, por segundo!...

Passando para as belas paisagens que ainda vamos tendo neste belo recanto ibérico, se a alguns, quando viajam, já incomoda a “floresta” de torres de energia eólica que dominam a paisagem, outros, de espírito mais ecologista, vêem nisso as energias limpas. É natural que assim se veja, quando se desconhece que, para fazer girar as pás de uma das grandes torres, só no rotor de cada aerogerador é usada uma tonelada de metais raros.

Vejam o filme (link abaixo), e depois tentem interrogar os habitantes das várias Chuquicamatas do mundo sobre a ideia que nos têm estado a incutir ao nos mostrarem a Noruega como exemplo a seguir. Será melhor não o fazerem, para não ouvirem dizer que a qualidade de vida dos ricos tem o custo de milhões de vidas humanas e a morte da própria natureza.

https://www.rtp.pt/play/p7804/e499007/o-lado-negro-das-energias-verdes

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Quinze minutos em companhia de Jesus Sacramentado

Meu filho, não é preciso saberes muito para muito me agradares, basta que me ames muito. Fala-me, pois, aqui, com singeleza, como falarias com o mais familiar de teus amigos, como falarias com tua mãe, como falarias com teu irmão.

Precisas de fazer em favor de alguém uma súplica qualquer?... Diz-me o seu nome, quer seja o de teus pais, quer de teus irmãos ou amigos; diz-me o que gostarias que Eu fizesse por eles... Pede muito, muito; não receies pedir-me, gosto muito dos corações generosos, que chegam a esquecer de certo modo as necessidades próprias para atenderem às alheias. Fala-me, assim, com simplicidade, com clareza, dos pobres a quem quiseras consolar: dos doentes a quem vês padecer, dos transviados que almejas tornem ao bom caminho; dos amigos ausentes que desejarias ter outra vez perto de ti. Diz-me por todos uma palavra, ao menos; mas uma palavra de amigo, palavra de dedicação fervorosa. Lembra-te que prometi escutar a súplica que saísse do coração: e não sairá do coração o pedido que me fazes pelas pessoas que teu coração mais especialmente ama?

E para ti não precisas de alguma graça? Faz-me se quiseres, uma lista de tuas necessidades e vem lê-la na minha presença.

Diz-me francamente que sentes orgulho, falsa delicadeza, amor à sensualidade e ao regalo; que és, talvez, egoísta, inconstante, negligente... e pede-me em seguida, que venha ajudar-te nos esforços, poucos ou muitos, que fazes para livrar-te de tais misérias.

Não te envergonhes, pobrezinho! No céu há tantos e tantos justos, tantos Santos de primeira ordem, que tiveram esses mesmos defeitos! Pediram com humildade, e a pouco e pouco viram-se livre deles.

Também não receies pedir-me bens do corpo e de entendimento: saúde, memória, sucesso feliz em teus trabalhos, negócios ou estudos... Tudo isso posso dar-te, e o dou e desejo que me peças, enquanto se não opuser à tua santificação, senão que a favoreça e ajude.

Hoje mesmo o que precisas? Que poderia Eu fazer em teu favor? Se conhecesses os desejos que tenho de te favorecer!...

Tens entre mãos alguns projectos? Conta-me-os miudamente. Que te preocupa? De que desconfias? O que desejas? Que poderia Eu fazer por teus irmãos, por tuas irmãs, por teu amigo, por teu superior, por teu pai, por tua mãe? Que desejarias tu fazer por eles?

E por Mim, não sentes desejos da minha glória? Não gostarias de poder fazer bem a teus próximos, a teus amigos, a quem muito amas, e que vivem talvez esquecidos de Mim? Diz-me que é que hoje atrai particularmente a tua atenção, que é que mais vivamente almejas, com que meios contas consegui-lo. Diz-me se não te sucedeu bem, e Eu te direi a causa do mau sucesso. Não quererias interessar-me em teu favor?

Sou, meu filho, dono dos corações, e docemente os levo, sem prejuízo da sua liberdade, para onde me apraz.

Estás talvez triste ou de mau humor? Conta-me, conta-me, alma desconsolada, as tuas tristezas muito miudamente. Quem te feriu? Quem melindrou teu amor-próprio? Quem te desprezou? Acerca-te do meu Coração, que tem bálsamo eficaz para as feridas do teu. Conta-me, e acabarás em breve por dizer-me, que à semelhança de Mim, perdoas tudo, esqueces tudo, e em troca receberás a minha benfazeja bênção.

Temes, por ventura? Sentes em tua alma aquelas vãs melancolias, que embora sejam injustificadas não deixam de ser bem angustiosas? Lança-te nos braços da minha Providência. Estou contigo, aqui, a teu lado me tens: vejo tudo, ouço tudo: nem um momento ficas desamparado.

Sentes desprezo da parte das pessoas, que antes te amavam, e vivem agora esquecidas e apartadas de ti, sem que lhes tenhas dado o menor motivo? Roga por esta tua necessidade; Eu farei que voltem a ti, se não servirem de obstáculo à tua santificação.

E não tens talvez alegria alguma a comunicar-me? Porque é que não me fazes partilhar dela, como bom amigo? Conta-me o que desde ontem desde a última visita que me fizeste, consolou e fez sorrir teu coração. Talvez tiveste agradáveis surpresas; acaso viste dissipados negros receios; talvez recebeste boas notícias, uma carta, mais um sinal de amor, venceste uma dificuldade, saíste de um perigo... Fui Eu que te procurei isso. Porque não me mostra por isso tua gratidão, e me dizes carinhosamente como um filho a seu pai: "Agradecido, meu Pai, muito agradecido". A gratidão atrai novos benefícios, porque ao benfeitor agrada ver-se correspondido.

Também não tens alguma promessa a fazer-me? Leio, bem o sabes, no fundo do teu coração; aos homens engana-se facilmente, a Deus não; fala-me, pois, com toda a lealdade. Tens firme resolução de não tornar a expor-te àquela ocasião de pecado? De privar-te daquele objecto, que fez mal à tua alma? De não ler aquele livro, que exaltou a tua imaginação? De não tratar mais com aquela pessoa, que turbou a paz do teu espírito?

Tornarás a ser brando, doce, amável e condescendente com aquele a quem, porque te melindrou, olhaste até agora como inimigo?

Agora, meu filho, volta às tuas ocupações, ao teu ofício, tua família, ao teu estudo... mas não te esqueças dos quinze minutos de agradável conversa, que tivemos, eu e tu, na solidão do santuário. Guarda, quanto puderes, silêncio, modéstia, recolhimento, resignação e caridade com o próximo. Ama a minha Mãe, que também é tua, a Santíssima Virgem...; e amanhã torna outra vez com o coração mais amoroso ainda, mais dedicado ao meu serviço; no meu acharás cada dia novo amor, novos benefícios, novas consolações.

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Manná do Christão, +- 1920 - pp. 163-169

Fonte:
http://romasempreeterna.blogspot.com.br

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Quando o exercício da liberdade faz doer


Há coisas que continuam a ser muito estranhas para mim. Uma delas é a importância das palavras. Ou melhor, a importância que lhes é atribuída, conforme quem as profere ou escreve, dependendo do estatuto ou do grau de responsabilidade do seu autor, como todos sabemos.
Palavras escritas ou ditas por quem está investido de autoridade, podem significar para um indivíduo, um organismo ou toda a sociedade, uma simples recomendação ou o dever de cumprimento. Depois e para além destas, há as que ouvimos dos amigos, da boca do povo e as dos agora designados fazedores de opinião. Quais delas as mais importantes? Uma pessoa inteligente poderá dizer que, pertencendo umas e outras ao campo estrito da opinião, lhe atribui simplesmente a importância da ideia veiculada, independentemente da sua origem.
Quantos de nós já ouviram ou leram palavras que lhe foram dirigidas, fossem elas de estímulo, de encorajamento, ou mesmo de correcção, palavras essas que tocaram alguns dos pontos sensíveis em nós e mexeram connosco, levando-nos a ver as coisas de maneira diferente?
Quantas vezes esses diferentes pontos de vista nos foram dados por pessoas simples, como nós, gente do povo? Sempre, dirá a maioria. Se um de nós disser que a pandemia vai deixar marcas no sentido de acentuar a já tendência comportamental de algumas pessoas, que a somar a outros medos as vai levar a distanciarem-se ainda mais, a ponto de até a própria ideia de socialização lhes causar sério desconforto, havendo por isso necessidade de estarmos mais atentos a essas pessoas, que importância, que peso é que podem ter essas nossas palavras? E se, exactamente as mesmas, forem ditas por figuras públicas? Ah, pois, aí a coisa muda de figura. E muda porque o que para nós conta não são as ideias ou pensamentos, o que conta é o estatuto ou importância da pessoa, ficando aí demonstrada a nossa pequenez.
Chegados, pois, ao ponto em que nos encontramos, ao dos sacrifícios a que fomos chamados para estancarmos a pandemia, defrontamo-nos com a controversa questão das celebrações comemorativas do 25 de Abril. Em defesa da sua realização nos moldes de sempre, ainda que com menos participantes, ouvimos coisas que só confirmam a ideia que tenho de alguns políticos convencidos que a sua opinião está acima de tudo e de todos, mesmo sabendo que o poder de um órgão de soberania como o da AR não é conferido por eles, mas emana do poder do próprio povo. E quando, em defesa das comemorações na AR, ouvimos frases do género: A democracia não está suspensa, é caso para perguntar se esse será o sentimento dos familiares e amigos dos que têm falecido, quando lhes é negado o direito e a liberdade de deles se despedirem, apesar de num espaço aberto, como é um cemitério, poderem estar muitas pessoas sem pôr em causa as distâncias de segurança; se será esse o sentimento de quem ficou impedido das celebrações litúrgicas e dos sacramentos, apesar de ser possível mate-las, observando os cuidados necessários.
Pois é. Na boca de muitos políticos, a liberdade é um bem a defender a todo o custo. O que vemos, porém, é que, para eles, liberdade tem um sentido diferente daquele que tem sido demonstrado por este povo exemplar, povo que para muitos políticos apenas serve de escadote para subirem.
Com a pandemia, os portugueses (fora os políticos, porque a pátria deles é a partidária), têm demonstrado o que para si significa liberdade. E têm-no demonstrado na forma como a liberdade melhor se pode exprimir, que não é no poder expressar-se livremente, nem muito menos no poder satisfazer vontades, mas agindo da forma como tem que ser, ainda que tal exercício faça doer.
Eu e a maioria dos portugueses, pese embora a aparente contradição, apesar de pais e filhos e avós e netos termos deixado de estar em família aos fins-de-semana, nem noutros dias podermos ir a casa uns dos outros, continuamos Livres, na medida em que cortamos todas as amarras que pudessem prender-nos a vontades ou pensamentos egoístas que por vezes sugerem outra forma de agir, enquanto que muitas das grandes figuras da nação (e seus seguidores), ao se verem contestadas pela forma como se propuseram celebrar o 25 de Abril, quais miúdos mimados e birrentos que esperneiam se os outros não aceitam brincar segundo as regras habituais, quando isso implicaria brincarem debaixo de uma forte chuvada, rotulam de fascistas quem tem ideia diferente (é como diz a mulher de má fama à colega de “profissão” quando outras mulheres dela começam a desconfiar: Chama-lhes p…, antes que te chamem a ti!).
Posso dizer por fim que os “donos” da democracia não são livres como pensam. Sê-lo-iam se não fossem escravos de ideologias, se se libertassem das fortes amarras que os impedem de agir como pessoas sensatas. Então sim que eu poderia dedicar um minuto a ouvi-los quando falam de liberdade. Até lá, caso a televisão esteja ligada e no canal que transmite as cerimónias, tirando o momento que para mim é sagrado, o do Hino Nacional, continuarei a exercer a liberdade de usar os botões do comando (desnecessário será dizer para quê).

quinta-feira, 12 de março de 2020

A BELÍSSIMA HISTORIA DO SAGRADO MANTO DE SÃO JOSÉ

O Manto de São José é uma bela e piedosa tradição que se tem passado oralmente entre os devotos de São José, de geração após geração, desde há séculos.
 
Por aqueles dias, São José devia dirigir-se às montanhas de Hébron, onde tinha ajustado um carrego de madeira; mas vinha adiando a partida dia após dia, na tentativa de reunir o dinheiro necessário. Porém, em vão! Os dias passavam e José não conseguira reunir senão metade do dinheiro. E o caso é que já não podia esperar mais; era preciso servir os clientes e portanto ir buscar a madeira.

- Se vos parece bem - disse-lhe a Santíssima Virgem -, pedirei emprestado aos parentes o dinheiro que falta.
- Eu mesmo irei - respondeu São José.
- Não, esposo meu - suplicou Maria -; deveis fazer uma longa viagem e não vos deveis cansar - e cobrindo a cabeça segundo o costume, saiu de casa. Ao regressar disse-lhe:
- Não há dinheiro. Pedi em várias casas e todas se desculparam; com certeza não o têm porque se o tivessem, porque se negariam a emprestá-lo? Mas pensei uma coisa, - continuou Maria, ocultando sob um doce sorriso o sentimento do seu coração -;...pensei que podíeis deixar o vosso manto como garantia até poder pagar e com isso o dono da madeira com certeza dar-se-ia por satisfeito.
- Pensastes bem - disse São José, baixando os olhos, para que a sua virginal esposa não os visse rasos de lágrimas.
- Adeus, esposo meu - disse Maria ao despedir-se -. O Deus de Abraão vos acompanhe e o seu Anjo vos guie.
- Adeus esposa minha; procurarei regressar depressa.


E partiu o santo com a metade do dinheiro e o manto novo que Maria lhe oferecera no dia do casamento.

***
- Deus te abençoe Ismael, disse o pai adoptivo de Jesus de modo cortês ao chegar à presença do dono da madeira contratada.
- Vens buscar a madeira? - foi a resposta à saudação de José -; bem podias ter vindo antes; pouco faltou para que ficasses sem nenhuma.

Ismael tinha mau feitio, era um avarento sem coração, a sua casa nunca conhecera a paz, a sua paixão era o dinheiro e tudo isto sabia José desde que negociava com ele; por isso já podemos imaginar a aflição que sentia o humilde carpinteiro por ter que declarar o estado das suas finanças. Escolheu a madeira, pondo-a de lado, e chegado o momento chamou à parte Ismael e falou-lhe assim:
- Não trago comigo senão a metade do dinheiro; mas tu sabes que sempre te paguei até à ultima moeda. Tem um pouco de paciência e pagar-te-ei até ao ultimo quadrante; entretanto fica com este manto como garantia.

Ismael protestou e voltou a protestar, de tal modo que esteve a ponto de desfazer o negócio; mas no fim lá acabou por ceder, se bem que de mau grado, ficando com o manto do casamento de São José como garantia até que este pudesse pagar.

O avaro Ismael tinha doentes os olhos desde havia tempo e apesar de inverter muito dinheiro em medicinas e médicos não conseguira ainda recuperar a saúde; tinha já perdido a esperança de se curar, pelo que foi grande a sua surpresa quando na manhã seguinte a este dia constatou que os seus olhos estavam sãos como se nunca tivessem estado doentes.

- Mas o que é isto?! - perguntava-se -. Ontem doentes com úlceras incuráveis, e hoje sãos sem medicina alguma!

Não atinava Ismael com a razão de tudo aquilo e ao chegar a casa contou à esposa o prodígio. Eva, que assim se chamava a mulher, era uma verdadeira serpente, tinha um génio de fera, e desde que casara com Ismael jamais havia tido paz, nem tranquilidade, nem gosto no matrimónio; mas aquela noite parecia um cordeiro. Que doçura a das suas palavras! Que mansidão! Que alegria no seu rosto antes sombrio e enrugado pela ira! "Que é isto? Que mudança é esta? Quem traria tal mudança?" - perguntava-se Ismael.

- Toma este manto e guarda-o - disse Ismael a Eva -. É de José, o carpinteiro de Nazaré, e há-de voltar por ele. Este manto deve ser a explicação de tudo o que está a acontecer - pensou para si Ismael -. Desde que o tenho em meu poder sinto em mim tal mudança, tais afectos e tais desejos, que não pode ser outra a causa. Ouviram então barulho no estábulo e, terminando a conversa, acudiram para ver do que se tratava.

Uma vaca, a melhor, a mais gorda, retorcia-se no chão. Pobre animal! Apesar dos remédios que ambos esposos lhe administravam não melhorava; pelo contrário, parecia ir apagar-se a qualquer momento. Lembrou-se então Ismael do manto de José e comunicou a Eva os seus pensamentos; nada tinham a perder; mas se a vaca se curasse, saberiam que o manto era a causa da sua sorte e do bem-estar que desfrutavam. Assim que lhe puseram o manto em cima o animal levantou-se do chão onde antes se retorcia e pôs-se a comer como se nada tivesse acontecido.

- Vês? - disse Ismael -, este manto é um tesouro. Desde que está em nossa posse somos felizes. Conservemos este presente dos céus; não nos desprendamos dele nem por todo o ouro do mundo.
- E não o devolveremos ao dono? - perguntou Eva inquieta.
- Não lho devolveremos - respondeu Ismael resolutamente.
- Então - disse Eva - vamos comprar-lhe outro melhor que este no mercado de Jerusalém e, se te parece bem, iremos os dois levar-lho.
- Sim - respondeu o marido -. Eu perdoo-lhe a divida e estou disposto a dar-lhe daqui em diante toda a madeira que ele necessitar.
- Não disseste que tem um filho chamado Jesus? - perguntou Eva -. Levar-lhe-ei de presente um par de cordeiros brancos e um par de pombas alvas como a neve. E a Maria, azeite e mel. Parece-te bem, esposo meu?
- Tudo me parece excelente - respondeu -. Amanhã iremos a Jerusalém e dali a Nazaré.


Já estavam os camelos preparados para a viagem quando chegou ofegante um irmão mais novo de Ismael dizendo que a casa de seu pai estava a arder e era preciso levar o manto do carpinteiro para apagar o incêndio. Não havia tempo a perder. Os dois irmãos correram precipitadamente para casa do pai e ao chegar cortaram um pedaço do milagroso manto e atiraram-no ao fogo. Não foi necessário derramar uma só gota de água; aquilo foi o bastante para apagar o incêndio. As gentes admiraram-se ao ver tal prodígio e louvaram o Senhor.

- Que aconteceu? - perguntou Eva ao vê-los de volta - Já se extinguiu o fogo?
- Sim - respondeu o esposo satisfeito -; um pedaço do manto bastou para realizar o milagre.


Dias depois apeavam-se dos camelos à porta do carpinteiro de Nazaré. Ismael, o antigo avarento, e Eva sua esposa, vinham cheios de humildade prostrar-se aos pés de José e Maria e trazer-lhes vários presentes. Ao vê-los, São José e a Santíssima Virgem Maria pensaram que vinham reclamar o dinheiro em falta e encheram-se de tristeza, pois ainda não tinham conseguido reuni-lo. Mas ao entrarem na casa onde José, Maria e o Menino Jesus se encontravam, puseram-se ambos de joelhos e tomando Ismael a palavra disse:

- Vimos, minha esposa e eu, agradecer-te pelos imensos bens que recebemos do céu desde que me deixaste o manto como garantia; e não nos levantaremos daqui sem obter o teu consentimento de ficarmos com ele para que continue a proteger a minha casa, o meu casamento, os meus interesses e os meus filhos.
- Levantai-vos - disse José, estendendo as mãos para os ajudar.
- Oh, Santo Profeta! - respondeu Ismael num arroubo espiritual -; permite ao teu servo que fale de joelhos e ouve estas palavras: os meus olhos estavam doentes e o teu manto curou-os; era usureiro, altivo, rancoroso e homem sem coração e converti-me a Deus; minha esposa estava dominada pela ira e agora é um anjo de paz; deviam-me grandes quantias de dinheiro e cobrei tudo sem trabalho algum; estava doente a melhor das minhas vacas e curou-se de repente; incendiou-se a casa de meu pai e extinguiu-se o fogo instantaneamente ao atirar para o meio das chamas um pedaço do teu manto.
- Louvado seja Deus por tudo! - disse baixando os olhos o santo Carpinteiro -. Levantai-vos, que não está bem que estejais de joelhos diante de um homem tão humilde como eu.
- Ainda não terminei - respondeu Ismael -. Tu não és um homem como os outros, mas um Santo, um Profeta, um Anjo na terra. Trazemos-te um manto novo, dos melhores que se tecem em Sídon; a Maria tua esposa trazemos-lhe azeite e mel, e a Jesus, teu filho, oferece-lhe minha esposa um par de cordeiros brancos e um par de pombas mais alvas que a neve do Líbano. Aceita estes humildes presentes, dispõe da minha casa, do meu gado e dos meus bosques, das minhas riquezas, de tudo o que possuo e...não me peças de volta o teu manto!
- Ficai com ele! - disse o santo Carpinteiro -; e graças, muitas graças pelas vossas ofertas.


E enquanto se levantavam do chão e aproximavam os presentes, disse-lhes Maria - sabei, bons esposos, que Deus determinou benzer todas as famílias que se coloquem sob o manto protetor do meu santo esposo. Não vos espantem pois os prodígios operados; outros maiores vereis; amai José, servi-o, guardai o manto, dividi-o entre os vossos filhos, e seja esta a melhor herança que lhes deixeis no mundo.

...E é sabido que os esposos guardaram fielmente os conselhos da Santíssima Virgem Maria e foram sempre felizes, assim como os seus filhos e os filhos dos seus filhos.

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Da publicação de Juliane Diniz, em sua página FB