1- O Soldado que deu “instrução” a um Sargento
Possuidor de uma personalidade que há
tantas gerações é aquela que melhor caracteriza o Transmontano, que é, além de
outras virtudes, a do sentido de justiça ‒ ainda que muitas vezes os actos dela
decorrentes não encontrem cobertura no quadro jurídico, o soldado Martins
cumpria o serviço militar em Chaves, quando, por razões que só esse outro lado
do ser transmontano podem explicar, “teve” que “acertar o passo” a um Sargento.
E a prova de que as lombeiradas sofridas pelo Sargento resultaram de um seu
acto sujeito a sanção disciplinar, encontrou-se na transferência de unidade a
que foi sujeito, ao ser transferido para o Porto. Já o Soldado, por muita razão
que tivesse, teria que ser punido, pelo insólito de ser um Soldado a “dar
instrução” a um Sargento J, pelo que lhe coube a ele a pena
disciplinar da transferência para Bragança. Das penas aplicadas a ambos podemos
depreender tratar-se de pena leve para o Sargento, na medida em que havia o
transporte de comboio a unir Chaves e Porto, enquanto que para o nosso Soldado
fora quase um desterro, por não haver qualquer meio de transporte que unisse
Chaves e Bragança.
Lá, chegou, como seria de esperar,
acompanhado de um “rótulo” que uns terão lido de uma forma e outros de forma
diferente, que é como dizer: para uns, quiçá muito poucos, visto como valente,
enquanto que para outros suscitava receio, ao entenderem que o “mimo” que dera
ao Sargento aconteceu por que era mau.
Naquele tempo, os “todo-terreno” de que
dispunha o Exército para o transporte de carga, eram mulas. Um dia, na parada o
Comandante diz que dá um mês de licença ao soldado que conseguir amansar uma
determinada mula. Na falta de voluntários, o Chaves, como lá passou a ser
designado o nosso Soldado Martins, aceitou o desafio, mas sob a condição de
poder tirar as botas, cobertas que seriam por polainas, que por sua vez se
seguravam à perna por fivelas, formando um conjunto já por si desconfortável,
que lhe dificultaria a necessária agilidade de movimentos. E apesar do invulgar
pedido, o Comandante, dada a natureza do exercício, permitiu que assim fosse.
Com toda a parada desimpedida para o
espectáculo que admitiam ser muito breve e em dois actos: o primeiro, de breves
segundos em cima da mula, e o segundo a verem-no malhar no chão, descalço, o
nosso intrépido soldado salta para cima da mula. Esta, que se estava nas tintas
para a disciplina militar e para as ordens do Comandante, luta com todas as
forças e usa de todas as manhas para se libertar do animal humano que ousara
pôr-se em cima dela. Mas esse animal humano, o soldado que logo terá começado a
deixar todos de boca aberta por ter aguentado os primeiros segundos sem cair,
talvez por ter passado, certamente, por idênticas experiências com os animais
que em sua casa terá amansado, não se aguentou apenas os primeiros segundos,
mas durante todo o tempo que a mula se debateu com pinotes, rodopios e voltas e
mais voltas parada fora, até que, exausta, pára, e acaba por se deitar, momento
em que o herói do dia diz: «tragam cá a albarda», para dar por concluída a
primeira e mais importante sessão do trabalho de amansar um animal.
Não menos admirado do que qualquer outro
dos presentes, o Comandante louva a destreza e capacidade do Soldado Martins,
ao dizer que fez ver aos mil soldados do Regimento.
E como as coisas difíceis eram para ele
dificuldades a vencer, terá sido para o gozo desse mês de licença com que fora
premiado, que o corajoso Martins veio a casa, usando como meio de transporte o
único de que dispunha, certamente as botas da tropa. Sim, a pé, desde Bragança…
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