terça-feira, 3 de agosto de 2021

HISTÓRIAS DE VILELA SECA - 1

 1-      O Soldado que deu “instrução” a um Sargento

Possuidor de uma personalidade que há tantas gerações é aquela que melhor caracteriza o Transmontano, que é, além de outras virtudes, a do sentido de justiça ‒ ainda que muitas vezes os actos dela decorrentes não encontrem cobertura no quadro jurídico, o soldado Martins cumpria o serviço militar em Chaves, quando, por razões que só esse outro lado do ser transmontano podem explicar, “teve” que “acertar o passo” a um Sargento. E a prova de que as lombeiradas sofridas pelo Sargento resultaram de um seu acto sujeito a sanção disciplinar, encontrou-se na transferência de unidade a que foi sujeito, ao ser transferido para o Porto. Já o Soldado, por muita razão que tivesse, teria que ser punido, pelo insólito de ser um Soldado a “dar instrução” a um Sargento J, pelo que lhe coube a ele a pena disciplinar da transferência para Bragança. Das penas aplicadas a ambos podemos depreender tratar-se de pena leve para o Sargento, na medida em que havia o transporte de comboio a unir Chaves e Porto, enquanto que para o nosso Soldado fora quase um desterro, por não haver qualquer meio de transporte que unisse Chaves e Bragança.

Lá, chegou, como seria de esperar, acompanhado de um “rótulo” que uns terão lido de uma forma e outros de forma diferente, que é como dizer: para uns, quiçá muito poucos, visto como valente, enquanto que para outros suscitava receio, ao entenderem que o “mimo” que dera ao Sargento aconteceu por que era mau.

Naquele tempo, os “todo-terreno” de que dispunha o Exército para o transporte de carga, eram mulas. Um dia, na parada o Comandante diz que dá um mês de licença ao soldado que conseguir amansar uma determinada mula. Na falta de voluntários, o Chaves, como lá passou a ser designado o nosso Soldado Martins, aceitou o desafio, mas sob a condição de poder tirar as botas, cobertas que seriam por polainas, que por sua vez se seguravam à perna por fivelas, formando um conjunto já por si desconfortável, que lhe dificultaria a necessária agilidade de movimentos. E apesar do invulgar pedido, o Comandante, dada a natureza do exercício, permitiu que assim fosse.

Com toda a parada desimpedida para o espectáculo que admitiam ser muito breve e em dois actos: o primeiro, de breves segundos em cima da mula, e o segundo a verem-no malhar no chão, descalço, o nosso intrépido soldado salta para cima da mula. Esta, que se estava nas tintas para a disciplina militar e para as ordens do Comandante, luta com todas as forças e usa de todas as manhas para se libertar do animal humano que ousara pôr-se em cima dela. Mas esse animal humano, o soldado que logo terá começado a deixar todos de boca aberta por ter aguentado os primeiros segundos sem cair, talvez por ter passado, certamente, por idênticas experiências com os animais que em sua casa terá amansado, não se aguentou apenas os primeiros segundos, mas durante todo o tempo que a mula se debateu com pinotes, rodopios e voltas e mais voltas parada fora, até que, exausta, pára, e acaba por se deitar, momento em que o herói do dia diz: «tragam cá a albarda», para dar por concluída a primeira e mais importante sessão do trabalho de amansar um animal.

Não menos admirado do que qualquer outro dos presentes, o Comandante louva a destreza e capacidade do Soldado Martins, ao dizer que fez ver aos mil soldados do Regimento.

E como as coisas difíceis eram para ele dificuldades a vencer, terá sido para o gozo desse mês de licença com que fora premiado, que o corajoso Martins veio a casa, usando como meio de transporte o único de que dispunha, certamente as botas da tropa. Sim, a pé, desde Bragança…

 José Augusto Santos

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