Num fim
de tarde, na Baixa, em Lisboa, ao passar junto de uma paragem de autocarro, o
Francisco reparou que de entre as várias pessoas que nela se encontravam, havia
uma que claramente se notava não se tratar de um pretenso passageiro: ocultando-se
no recanto interior da paragem, procurava evitar que em seu rosto se vissem os
sinais de sua tristeza. Chorava.
Depois de
se inteirar das razões que o levavam a estar assim, o Francisco acedeu em
comprar-lhe um maço de lenços para o ajudar a não ter que suportar todo o dia
apenas com uma sandes.
Quando o
infeliz viu que tinha diante de si alguém que a ele se dirigira, que o ouvia e
que até deu pelos lenços o que daria para comprar muitos maços, num momento em
que não estava a suportar o ser ignorado ou repelido por toda a gente, como se
estivesse sozinho sem que ninguém o visse, benzeu-se. Mas num gesto tão
verdadeiro, que impressionou o Francisco.
Depois de
um curto diálogo dirigiram-se a uma pastelaria ou snack-bar, uma vez que, por
humildade, o pobre não aceitou tomar uma melhor refeição num restaurante para a
qual fora convidado.
A escolha
parece não ter sido a mais acertada para o Armando (assim se chama o pobre
rapaz), pois, pelo traje e se calhar pela cor, levou a que um solícito
empregado lhe demonstrasse claramente que, alguém assim, não era digno de uma
casa cujos empregados vestem elegantes fardas.
Ainda o
Armando não se tinha recomposto da humilhação, quando um segundo empregado se
lhe dirige no mesmo sentido, acabando – à semelhança do primeiro – por pedir
imensas desculpas ao Francisco.
Serviu o
incidente para mais uma vez o pobre demonstrar o quão madrasta para ele é a
vida, justificando a razão pela qual até já tinha tentado acabar com ela. De
facto, sem qualquer tipo de amparo, sem uma mão caridosa, é natural que ocorram
tais tentações a quem, como ele, tinha vindo de Angola com a mãe aos dois ou
três anos, e aos nove se vê, por morte da mãe, sozinho no mundo, tendo a rua
como morada, os caixotes do lixo como mesa, o frio da noite como agasalho e o
passeio num recanto de um prédio como cama.
Se a tudo
isto sobrevivia há nove ou dez anos, estava a ser-lhe bem mais difícil
sobreviver à indiferença e frieza das pessoas, o que o remetia para o recanto
mais angustiante da solidão humana.
Duas
apresentáveis senhoras que também ao balcão se encontravam, não disfarçavam sua
admiração pelo altruísmo do Francisco, enquanto o viam animar o Armando,
ajudando-o a interpretar sinais de esperança.
Assegurando-se
de que ficaria bem alimentado, depois de ter pago a despesa, o Francisco
despediu-se, estendendo-lhe a mão direita, enquanto que com a esquerda lhe
tocava o rosto e com o olhar procurava tocar-lhe a alma. E apressou-se a sair
antes que os seus olhos lhe denunciassem a grande inundação que no seu interior
se anunciava no rio da emoção, onde corriam misturadas as águas da caridade, do
amor e da compaixão.
Poucas
dezenas de metros percorridos, com as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto, entendendo
que não tinha referido um aspecto que ajudaria o Armando a discernir os sinais
de esperança, recompondo-se, voltou para trás e disse-lhe que reparasse como
valia a pena não desistir, porque se um dia a polícia o importunava, não o deixando
pernoitar em determinados lugares, outro dia, outro polícia, que era ele,
ouvia-o, dando-lhe a atenção que dizia não ter, tratando-o com a maior
dignidade.
Depois
disto, a admiração inicial das já referidas senhoras ficou bem mais evidente em
seus rostos, quiçá por não esperarem que um polícia também faça destes
“serviços”. Por fim, enquanto o Armando acabava de comer, o compassivo polícia
deu-lhe mais dinheiro, para que ao menos aquela noite não a passasse na rua. E
como que impelido por uma voz interior, disse-lhe que iria aparecer alguém que
o iria ajudar, e saiu.
Se é
verdade que não são todos os polícias, todos os dias, a fazerem destes “serviços”,
também é verdade que todos ganharíamos se olhássemos para a polícia com outros
olhos. E porque intervenções destas não têm a visibilidade que é dada às que
são de lamentar, é de inteira justiça que relate aqui este “caso de polícia”.