segunda-feira, 30 de junho de 2008

O menino e o cachorro

(Continuação do artigo “Carta de um catequista a um seu catequizando”)

Um menino, de seis ou sete anos, um dia disse a seus pais que gostava da casa para onde tinham mudado, mas que gostaria muito de ver satisfeito um seu desejo há muito manifestado, que os pais sempre adiaram derivado a morarem num apartamento. Uma vez que tinham passado a morar numa quinta, no dia seguinte, ao chegar da escola, seu pai esperava-o com uma grande surpresa: um belíssimo e ternurento cachorrinho.

Cedo se tornaram companheiros inseparáveis, de tal forma, que, o outrora cachorrinho, depois de se ter tornado um grande e belo cão, tinha memorizado todos os tempos que o seu amigo tinha que dedicar aos trabalhos, e quando ele se demorava um pouco mais, subindo com jeito a um canteiro em frente de uma janela, porque sabia que os donos lhe ralhavam, levantando-se, apoiava as grandes patas no parapeito da janela e, para não fazer grande alarido − não fossem vê-lo naquelas tropelias em cima do canteiro −, batia com uma pata no vidro da janela, chamando o amigo para irem para a brincadeira.

Quando o menino regressava da escola, mesmo estando ainda longe de casa, sua mãe era avisada da sua aproximação através das manifestações de alegria do seu maior amigo, o cão, que nessa altura procurava a dona para dessa forma a avisar e mostrar-lhe ao mesmo tempo o seu contentamento pela chegada daquele que era sempre recebido segundo mandam as regras à cão: as patas em cima, levando a que muitas das vezes os dois se rebolassem pelo chão, umas rosnadelas enquanto o ia abocanhando por onde pudesse, mas sem o magoar, terminando sempre a recepção da mesma maneira: encher o menino de beijos, que é o mesmo que dizer, deixar-lhe a cara toda lambuzada.

O tempo foi passando, e, já mais crescido, sem que houvesse qualquer razão que o justificasse, o rapaz telefonou para casa, para dizer que não o esperassem, porque ia dormir em casa de um amigo. Só não disse que essa seria apenas a primeira de muitas noites que faziam parte do plano de deixar a casa paterna, seduzido pelas ideias liberais que acolheu de quem sobre ele exercia poder de influência.

Em vão os pais se esforçaram por encontrá-lo.

Uns meses depois, decidiu passar por casa para levar umas coisas de que necessitava.

Esta experiência transformara o seu coração mais do que o que a inteligência lhe permitia perceber. Era sua convicção que, junto dos outros, da maioria, dos que “curtem cenas”, que não são “betinhos”, agora estava mais capaz para a vida. O que ele não via, era que a mudança nele operada tinha raízes mais fundas. Não se tratava simplesmente de comportamentos ou ideias assimiladas, mas do que fora sacrificado, que era a candura e o brilho do seu coração. Evoluindo desta forma, pensando que isso era crescimento, reduziu muitíssimo a capacidade de visão para dentro da sua alma. Estava por um fio a perda total dessa visão, por que é através do coração, que lhe serve de espelho, que ela se vê, e esse tal “crescimento” tornara baço o coração, onde a alma é reflectida. O brilho do coração tem outra função que funciona em sentido inverso: reflecte para a alma a Luz que vem do Alto, e é dessa forma que a maioria das almas vivem hoje aprisionadas numa angustiante escuridão, definhando a cada dia que passa, por estarem privadas da Luz.

Ao chegar ao portão da quinta, esperava ver o Niko (esse era o nome que ele mesmo tinha dado ao seu fiel amigo) a correr para ele, mas do Niko, nem sinais. Ouviu ao longe uma voz chamar o seu nome. Era seu pai que, ao vê-lo desde o alpendre onde se encontrava, ao lado da casa, correu para o abraçar, enquanto lhe ia falando da única forma que no momento conseguia: estreitando-o em seus braços bem encostado ao peito, o ritmo cardíaco mais acelerado, a respiração quase ofegante e uma torrente de lágrimas, eram a única coisa que conseguia dizer.

Seu pai, acometido de grande emoção, pô-lo ao corrente da situação de sua mãe e do Niko. Ambos têm passado mal na sua ausência. O desgosto levara a que o Niko sofresse mais os efeitos da perda do amigo. Durante muito tempo, nada nem ninguém conseguia que ele deixasse de permanecer junto do portão, esperando que o amigo chegasse a qualquer momento. Emagrecera muito, e nem todos os cuidados veterinários pareciam fazer regredir o desfecho temido. Muitas vezes viam-no os donos, quando dormia, a mexer ligeiramente as pálpebras, percebendo-se um ligeiro movimento da cabeça e como que uma tentativa de surdos latidos. Despertando, olhava em redor e, vendo que afinal a realidade era outra, entregava-se a tristes gemidos, seguindo-se-lhe uma lágrima que chamava a atenção para aqueles olhos que não pareciam mais os do Niko que, segundo o que comentavam os donos entre si, sonhava com o que tanto desejava, o amigo, e ao despertar, vendo que ele não estava, chorava, avivando com isso a dor que os donos sentiam.

Enquanto ouvia tudo isto de seu pai, caminhando vagarosamente à sombra das muitas e variadas árvores de fruto que ladeavam o caminho entre o portão da entrada e o jardim, chegaram a casa.

E porque esta história, quando a comecei com a ideia de me servir de um pensamento que me ocorreu descrevendo-o num pequeno parágrafo, já vai longa por eu mesmo ter gostado dos pensamentos que se sucediam para a sua criação, impõe-se-me que a deixe por aqui, por já ter conteúdo bastante para te permitir perceber o que pretendo dizer-te com ela. Repara que o final não está contado. Ele depende apenas e só de um dos personagens. Queres tu dar-lhe continuidade, dando-me a possibilidade de ver como ela termina?

(...) «Que o Senhor te conceda a sabedoria do coração» (Sir 45, 26a).

«O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça!» (Nm 6, 25).

Que os Anjos te protejam!

Eu, como o Niko, ficarei esperando à porta, lembrando-me do meu A…, enquanto vou auxiliando o teu Anjo da Guarda com as minhas orações.

Com o coração a verter uma lágrima, aquele que não quer deixar de ser teu catequista,»

J. A. S.

Carta de um catequista a um seu catequizando

«Querido A…:

Que a Luz que recebeste no Baptismo se avive em teu coração depois de leres estas palavras, (…).

Poderá surpreender-te o facto de o teu catequista se dirigir a ti desta forma, quando se trata de alguém que acabaste de conhecer, com quem estiveste apenas durante seis horas − contabilizadas as tuas presenças nos encontros de catequese até ao momento. Mas passo já a explicar-te:

Eu não sou mais do que o simples portador de uma mensagem que não é minha, que te é dirigida, e se não fosse por meu intermédio, poderia até dizer-se expressa e directamente da vontade de Deus.

Eu sei que esta é uma linguagem que pode soar de forma estranha ao teu entendimento, mas como poderá Jesus, como poderão Deus Pai e o Espírito Santo vir a estabelecer contigo uma relação de amizade, capaz de te levar ao desejo das coisas do Alto e ao entendimento de tudo o que fica vedado a todos os que não criam intimidade com Deus, se neste momento estás disposto a deixar a catequese?

Meu querido A… Asseguro-te, baseando-me também em todas as coisas que já vivi, que, todo o sucesso, toda a realização pessoal, tal como hoje nos são apresentados, não passam de enormíssimas falsidades que, em vez de felicidade, quase sempre conduzem a pessoa a um sentimento de vazio, que por sua vez gera frustração. E quando há frustração, há revolta e por aí adiante. (…)

Repara bem, A…, que esse tal vazio, é hoje um fenómeno que atinge as pessoas de todas as camadas sociais, tanto ao pobre como ao rico. Não vemos nós, muitos casos de rapazes e de raparigas, de homens e de mulheres, que, aspirando ao casamento com a pessoa dos seus sonhos, a um bom emprego, a um estatuto social, a altos cargos, a riqueza, a ter filhos, depois de terem conseguido tudo isso ou até mais, passarem a frequentar as salas dos tribunais, os consultórios dos psicólogos e dos psiquiatras e a terem muitos outros problemas?

Por que será A…? Por que será que as pessoas são hoje indiferentes a tudo, inclinando-se assim para o egoísmo, e na questão dos sentimentos parecem distantes, frias, sendo esse o meio para que se tornem ásperas, agressivas nos modos, como se vê em tantos com quem convivemos diariamente e até em muitos que todos os dias vemos nas televisões? Apenas por uma razão fundamental: por estarem privadas dos benefícios que a actividade dos Dons do Espírito Santo em si lhes proporcionaria.

(...) Como já compreenderás neste momento, não é Deus quem priva alguém dos Seus dons, das Suas riquezas. É a pessoa que, ao escolher determinados caminhos, tomando determinadas opções, é ela mesma que se auto-exclui da Herança desse tesouro que é de uma grandeza, de um valor e de uma beleza que o entendimento humano não consegue abarcar, que é o regressarmos ao lugar onde a nossa alma já esteve quando foi criada pelo Pai, à alegria de passarmos a viver em definitivo junto de Deus.

Esse é o estado de felicidade plena, que só no Céu pode alcançar-se. No entanto, para se atingir Deus dessa forma, torna-se necessário e imprescindível que com Ele vivamos nesta vida, recolhidos sob o Seu tecto, que é a Santa Igreja, a única casa onde se encontra o alimento necessário para um crescimento saudável, forte e feliz.

Está bem, mas eu ainda tenho 13 anos, e acho que com isto tudo o catequista me está a falar de coisas que até nem fazem propriamente parte das preocupações da minha idade, pensarás tu. Se assim pensares, que acredito que seja o mais natural, caso contrário não me tinhas comunicado que ias deixar a catequese, estás a ser invadido pelos pensamentos mais insensatos, sempre responsáveis pelas erradas decisões.

(…) Que mais te posso dizer, meu A…?

Embora o texto já vá longo, permite-me partilhar um momento muito particular: ao acabar de escrever a frase anterior, relendo o que escrevi, os olhos ficaram-me molhados pelas lágrimas, pois, sendo o pensamento muito veloz, detive-me neste ponto: “meu A…”. E pensei: estou a dizer “meu A…” e ele já a ir-se embora… Não, vou corrigir esta parte, porque estive muito pouco tempo com ele para poder tratá-lo assim, e também não faz sentido eu dizer “meu” a alguém que já não é… E eis que de repente apercebo-me de uma coisa estranha: estou a chorar… É então que me sobreveio outro pensamento: quem escreveu fui eu, mas o autor foi Jesus, e se assim é, Ele tem toda a legitimidade para dizer: meu A… E quanto ao resto, dado que em minhas orações o que eu mais Lhe peço é que me faça Seu instrumento, utilizou-me para assim te falar, ao ponto de não excluir a minha sensibilidade, que procuro que seja o mais ajustada possível à d’Ele, (...).

E agora sim, para terminar, uma história:»

(Continua)