domingo, 20 de fevereiro de 2022

O Indigente e o Altruista


Num fim de tarde, na Baixa, em Lisboa, ao passar junto de uma paragem de autocarro, o Francisco reparou que de entre as várias pessoas que nela se encontravam, havia uma que claramente se notava não se tratar de um pretenso passageiro: ocultando-se no recanto interior da paragem, procurava evitar que em seu rosto se vissem os sinais de sua tristeza. Chorava.

Depois de se inteirar das razões que o levavam a estar assim, o Francisco acedeu em comprar-lhe um maço de lenços para o ajudar a não ter que suportar todo o dia apenas com uma sandes.

Quando o infeliz viu que tinha diante de si alguém que a ele se dirigira, que o ouvia e que até deu pelos lenços o que daria para comprar muitos maços, num momento em que não estava a suportar o ser ignorado ou repelido por toda a gente, como se estivesse sozinho sem que ninguém o visse, benzeu-se. Mas num gesto tão verdadeiro, que impressionou o Francisco.

Depois de um curto diálogo dirigiram-se a uma pastelaria ou snack-bar, uma vez que, por humildade, o pobre não aceitou tomar uma melhor refeição num restaurante para a qual fora convidado.

A escolha parece não ter sido a mais acertada para o Armando (assim se chama o pobre rapaz), pois, pelo traje e se calhar pela cor, levou a que um solícito empregado lhe demonstrasse claramente que, alguém assim, não era digno de uma casa cujos empregados vestem elegantes fardas.

Ainda o Armando não se tinha recomposto da humilhação, quando um segundo empregado se lhe dirige no mesmo sentido, acabando – à semelhança do primeiro – por pedir imensas desculpas ao Francisco.

Serviu o incidente para mais uma vez o pobre demonstrar o quão madrasta para ele é a vida, justificando a razão pela qual até já tinha tentado acabar com ela. De facto, sem qualquer tipo de amparo, sem uma mão caridosa, é natural que ocorram tais tentações a quem, como ele, tinha vindo de Angola com a mãe aos dois ou três anos, e aos nove se vê, por morte da mãe, sozinho no mundo, tendo a rua como morada, os caixotes do lixo como mesa, o frio da noite como agasalho e o passeio num recanto de um prédio como cama.

Se a tudo isto sobrevivia há nove ou dez anos, estava a ser-lhe bem mais difícil sobreviver à indiferença e frieza das pessoas, o que o remetia para o recanto mais angustiante da solidão humana.

Duas apresentáveis senhoras que também ao balcão se encontravam, não disfarçavam sua admiração pelo altruísmo do Francisco, enquanto o viam animar o Armando, ajudando-o a interpretar sinais de esperança.

Assegurando-se de que ficaria bem alimentado, depois de ter pago a despesa, o Francisco despediu-se, estendendo-lhe a mão direita, enquanto que com a esquerda lhe tocava o rosto e com o olhar procurava tocar-lhe a alma. E apressou-se a sair antes que os seus olhos lhe denunciassem a grande inundação que no seu interior se anunciava no rio da emoção, onde corriam misturadas as águas da caridade, do amor e da compaixão.

Poucas dezenas de metros percorridos, com as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto, entendendo que não tinha referido um aspecto que ajudaria o Armando a discernir os sinais de esperança, recompondo-se, voltou para trás e disse-lhe que reparasse como valia a pena não desistir, porque se um dia a polícia o importunava, não o deixando pernoitar em determinados lugares, outro dia, outro polícia, que era ele, ouvia-o, dando-lhe a atenção que dizia não ter, tratando-o com a maior dignidade.

Depois disto, a admiração inicial das já referidas senhoras ficou bem mais evidente em seus rostos, quiçá por não esperarem que um polícia também faça destes “serviços”. Por fim, enquanto o Armando acabava de comer, o compassivo polícia deu-lhe mais dinheiro, para que ao menos aquela noite não a passasse na rua. E como que impelido por uma voz interior, disse-lhe que iria aparecer alguém que o iria ajudar, e saiu.

Se é verdade que não são todos os polícias, todos os dias, a fazerem destes “serviços”, também é verdade que todos ganharíamos se olhássemos para a polícia com outros olhos. E porque intervenções destas não têm a visibilidade que é dada às que são de lamentar, é de inteira justiça que relate aqui este “caso de polícia”.

 Fonte:

SANTOS, José Augusto, O Indigente e o Altruísta, Notícias de Chaves, n.º 2460 (27-02-1998), p.11