Como num infindável número de lugares, decorria também na minha comunidade paroquial o arraial de S. João. Confraternizando com uns enquanto comia a sardinha e o caldo verde, fui depois saudando este ou aquele, estando com outros um pouco mais. Coisa muito simples, o estar um pouco com alguém, mas para mim muito importante, sempre que consigo situar-me com a pessoa fora do corriqueiro, do banal, como é a tendência de estarmos sempre a sermos comentadores sem convite das coisas que mais respeito dizem à vida particular de alguém, das questões futebolísticas, novelescas ou outras do género.
Foi assim que me dirigi à D. Cecília, pedindo-lhe para me sentar junto dela, dado que estava sozinha e com uma carinha que não era a melhor. Nos escassos minutos que com ela estive, soube que o número de operações a que já tinha sido sujeita, já ia em doze, mais quatro, portanto, do que aquelas de que eu tinha conhecimento.
Pude ainda saber que, apesar de ser pessoa muito doente, a D. Cecília, quando deveria estar muito sossegada a convalescer da última operação, ainda se empenhou, muito para além do que seria suposto serem as suas forças, em ajudar à resolução de um sério problema de ordem social e higiénico-sanitária de um casal que vive próximo. Como admiro a D. Cecília! Pessoa com uma cruz tão pesada, e consegue transporta-la sem que aqueles com quem se cruza diariamente dela se apercebam.
Passando por outra mesa, para trocar um carinhoso abraço com uma amiga sobre quem também já escrevi (aquela viúva que na juventude “fugia” à mãe para ir tratar dos leprosos), aproveitei para conhecer um senhor que com ela se encontrava, dado que o conhecimento que dele tinha era apenas o vê-lo por vezes na Missa. Foi-me então apresentado o Sr. Borges, a quem perguntei o seu nome próprio. Esta minha amiga, entre outras coisas, disse-lhe que eu era catequista, ficando eu a saber que também ele o quis ser.
Quando seus filhos eram jovens, o Sr. Álvaro, é este o seu nome próprio, fazia com que outros jovens da aldeia fossem frequentando a sua casa, procurando assim ir sendo a luz possível nos caminhos tão inseguros dos jovens. Com os filhos já maiores e chegado à idade da reforma, viu-se liberto para poder dedicar-se a algo para o qual se sentia ser chamado. Disse então ao seu pároco que gostava de ser catequista.
Ao despedir-me do Sr. Álvaro, segurando carinhosamente em minhas mãos a sua mão, quis demonstrar-lhe o enorme respeito que me merecia, e beijei aquela mão que tanto bem já fizera em sua vida e continua a fazer. O que não lhe demonstrei, foi a tristeza que tive em saber que o seu pároco o impedira de se dedicar à catequese, alegando como desculpa o facto de a igreja ser fria, não sendo por isso boa para alguém em idade de reforma.
Vinte ou trinta anos depois, vim eu a conhecer o Sr. Álvaro, aproveitando ele agora todas as oportunidades que tem para ir a casa dos mais necessitados, auxiliando aquela minha amiga nesse trabalho de tanta entrega aos pobres. Nem os seus 87 anos o impedem de tão santo apostolado. Alguns dias depois, vim a saber que, ainda agora na sua terra, dificilmente alguém o encontrará em casa, porque anda sempre em Missão.
Não é de estranhar, portanto, que nenhum dos seus cinco filhos tolere aos irmãos que tenham em sua casa o pai um dia a mais do que a cada um pertence. Uma vez que está um mês em casa de cada um, aguardo com ansiedade o mês de Novembro, mês que penso que volte a calhar ao seu filho José, para eu fazer com os meus catequizandos um encontro que irá ser, não tenho dúvidas, marcante para todos nós, ao ser dirigido por quem sempre foi, afinal, catequista sem catecismo.
Soubesse, quem tem o poder para tomar decisões, reconhecer os possíveis mananciais de riqueza existentes em quem tem muitíssima mais experiência, e tudo quanto é área de actividade humana, não pondo de parte a eclesial, mais enriquecedoramente convergiria para o bem comum, mas, infelizmente, pululam por todo o lado pessoas como o outrora pároco do Sr. Álvaro…
Na sociedade, para aqueles que chegaram à idade da reforma, parece não haver mais lugar, desperdiçando-se assim tanta riqueza. Quão estultos são aqueles que parecem ter uma fixação pelo conceito de renovação, aplicando-o à melhor de todas as "matérias-primas", o capital humano.
A velhice confere autoridade, e prestígio os cabelos brancos que levaram uma vida íntegra, assim diz o Senhor, Deus, no segundo livro dos Macabeus (Cf. 2Mac 6, 23), dizendo ainda no livro de Job que, pela longevidade se chega à sabedoria (Cf. Jb 12, 12), mas nas sociedades ditas modernas, até a Palavra de Deus se procura reciclar, ficando apenas aquilo que não incomode as consciências... e o que é ainda mais grave, é o serem os próprios ministros sagrados que só parece preocuparem-se com agradarem ao povo, preocupando-se bem menos que o seu ministério seja do agrado de Deus. Tratam apenas do exterior, e agradados com o prestígio que daí lhes pode vir, deixam de ser capazes de chegar ao interior das almas, que é afinal a primeira e última razão do seu ministério.
Sem comentários:
Enviar um comentário