terça-feira, 5 de abril de 2011

A criança e o tio, e a procissão da Sagrada Família

Era Quinta-feira, 17 de Julho, do ano 1997, um dia como tantos outros, mas diferente para o Victor Manuel, que, num grave acidente de trabalho, originado por uma queda de nove metros de altura, passou à ténue fronteira que se situa entre a vida e a morte.

Do trágico acidente, resultaram-lhe fracturas graves na bacia, clavícula esquerda e toda a parte dorsal do mesmo lado, com fracturas em quase todas as costelas.

Na mesa de operações, depois de diagnosticados traumatismos em vários órgãos, como o sistema hepático, foi-lhe retirado o baço. Mas porque o seu estado era demasiado crítico, os médicos nada mais puderam fazer para além de procurarem retardar-lhe a morte, ligando-o às máquinas que permitem manter o estado de coma por tempo indeterminado.

À mãe, procuraram poupá-la do prognóstico, mas para uma irmã que o acompanhava mais de perto, foram peremptórios, dizendo-lhe que se preparasse para aquilo que só um milagre poderia evitar, e que fosse preparando a família.

A Inês, sobrinha do malogrado Victor, que tinha acabado de completar sete anos, tendo visto o tio naquele estado, foi sujeita a uma experiência que a levaria a estar na base dos acontecimentos que se seguiram.

Num povoado da Ericeira, onde a criança de expressivos olhos azuis passou a morar, houve no final de Agosto, daquele ano de 97, a procissão da Sagrada Família, na qual quis participar de princípio ao fim, o que constituiu algum sacrifício para a bisavó paterna, que teve que a acompanhar em todo o relativamente longo percurso.

Terminado o religioso cortejo e já no interior da igreja, saiu do lugar onde estava e, dirigindo-se lá à frente – não sei se aos pés do andor ou do altar de Nossa Senhora –, recolheu-se em oração.

Apreciando tão piedosa atitude, a bisavó, ao vê-la regressar ainda de mãos postas em gesto de oração, fez-lhe uma pergunta, cuja resposta foi tão simples quanto seria de esperar de uma criança: «Estive a pedir ao Jesus que tirasse o meu tio daquelas máquinas, porque eu não quero que ele esteja assim».

Entretanto, no hospital, o estado do Victor tinha-se agravado, facto que levou os médicos a decidirem fazerem-lhe uma traqueotomia, ou seja, abrirem-lhe um buraco na traqueia, impedindo assim que a morte lhe adviesse por asfixia.

Quando aquele dia de Domingo chegava ao fim (o dia da procissão), deixava de haver necessidade daquela derradeira intervenção, que era apenas uma última tentativa para retardar um pouco mais o que há muito era esperado, deixando ao mesmo tempo de fazer sentido que as máquinas continuassem ligadas, e acabaram por desligá-las.

Como nada fora comunicado a sua mãe, à hora da visita no dia seguinte, ao dirigir-se ela à cama do filho, recebeu o choque de ver a cama vazia…

Dirigiu-se ao telefone e ligou à filha a dar-lhe a notícia. Foi então que esta lhe deu conta do que no dia anterior se tinha passado com a pequena Inês e, ligando as coisas, apenas se limitou a constatar a irrefutável verdade, uma vez que, antes da procissão, seu irmão tinha piorado, quando se encontrava em coma, e depois dela, não só retrocedeu na caminhada para a morte que estaria eminente, como, pelo seu próprio pé – ainda que ajudado – saiu da cama, deixando todos aqueles tubos e passou a um sofá onde a mãe o foi encontrar bem refastelado.

Pouco mais de quinze dias depois, também eu fiquei muito surpreendido ao vê-lo na rua a sair do autocarro, quando regressava de uma consulta no hospital.

A Inês, que tinha manifestado aos pais vontade nesse sentido, entrou naquele ano para a catequese. E o mesmo fez seu tio Victor Manuel, com cinquenta anos, que passou também a preparar-se para o Baptismo, que viria a receber juntamente com outros adultos.

Nesta história, há um pormenor que julgo não poder deixar de referir, que é o facto de, nos sete ou oito anos anteriores ao grave acidente, ele se deslocar à Ericeira para participar naquela procissão, o que fazia com devoção.

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