Na minha querida aldeia, onde sempre se viveu um ambiente religioso que
cultuava as Almas do Purgatório, todos os anos, entre os finais de Outubro e
princípios de Novembro, uma comissão constituída por duas ou três pessoas encarregava-se
de andar de porta em porta a fazer um peditório para o Ofício da Almas, que se
realizava em Novembro, mês especialmente dedicado a sufragar as almas que
padecem as penas do Purgatório. Esta piedosa devoção resulta da consciência em
saber quanto bem se pode fazer em favor daqueles que constituem a Igreja
Padecente, uma vez que eles já nada podem fazer para alcançarem mérito algum
que lhes possa aliviar as suas penas.
Num ano em que não havia quem quisesse substituir os do ano anterior
nesse trabalho, por declarada indisponibilidade dos mesmos, meu pai, não sendo
capaz de aceitar tão grande perda para as Almas do Purgatório, propôs-se ele
mesmo levar a cabo essa tarefa, nela me chamando a participar como seu
“secretário”, quando eu teria uns nove ou dez anos.
O meu papel, que orgulhosamente desempenhava, era o de anotar
cuidadosamente os nomes das pessoas e o valor do seu contributo. Como noutros
peditórios, no final afixava-se em local habitual o relatório de contas,
cumprindo assim com o intrínseco dever de rectidão e transparência.
Quando já pouco nos faltava para termos chegado a todas as casas,
percorrendo o alto da Barreirinha, íamos entrar naquela que tem hoje o nome de
Rua da Fonte da Moura, quando um desconhecido se aproxima de nós. Com ar
cansado, perguntou por onde deveria seguir para ir até uma determinada terra em
Espanha. Dizendo de onde vinha, de uma localidade próxima de Vila Real, seu fim
era o de ir ao encontro de um irmão que adoecera.
Depois de meu pai constatar o quanto ainda lhe faltava para chegar ao seu
destino, que percebi ser bem mais do que o que já tinha percorrido, e a pé, com
uma expressão de compaixão bem visível no rosto, disse ao pobre caminhante que
era melhor acompanhar-nos a casa para retemperar um pouco as forças.
Regressando a casa antes do tempo supostamente previsto, meu pai expôs a
situação à minha mãe, que logo tratou de alimentar o visitante com o melhor de
que dispunha. Terminada a refeição, preocuparam-se em lhe arranjar um farnel
que lhe desse para algum tempo da grande caminhada que ainda tinha pela frente.
Saiu meu pai com o pobre homem, para o acompanhar até um ponto da aldeia
de onde melhor lhe podia dar a indicação do caminho a seguir.
Eu já não o acompanhei porque, por aquele dia, o peditório tinha
terminado. Aproveitando o facto de me encontrar sozinho na sala, voltei-me para
a imagem de um quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e, com um
profundíssimo pesar por nada mais podermos fazer, supliquei à Mãe de Jesus que
amparasse aquele seu filho.
Aquela oração foi tão sentida que logo fez repercutir em mim aquilo que
na verdade eu entendo como sendo ecos da alma, do interior da qual ela brotava.
E dada a insignificância do humano perante o divino, as potências da alma
fizeram emergir a sensibilidade do coração, razão pela qual aquela súplica à
Mãe de Deus passou a ser verbalizada e acompanhada de abundantes lágrimas.
Hoje relembro aqui aquele episódio para honrar a bondade de meus pais,
mas também a memória de um homem cujo coração o levou a empreender tão grande
jornada sem se preocupar com as inerentes dificuldades, porque maior eram o seu
amor e compaixão pelo seu irmão que estava doente.
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